Despedida

Um olhar e um gesto. Uma despedida. O amor, sobretudo. E a saudade.

Um olhar.

          Foi na véspera de Natal de 2019 que aquele coração, que já tinha suportado tantas emoções, infartou. Uma data significativa, porque nesta mesma data, há anos, ela perdia seu caçula, Arturzinho. Ana foi pro hospital e voltou para casa dois dias depois.

          Em casa, sentíamos ela fraca. Pudera: com o infarto, ela perdeu 60% de sua capacidade cardíaca.

          Aquele jatobá imenso em sua força e vitalidade, sentia dor. Naquele dia, a levamos para a sala, que dá para o jardim nos fundos da casa que ela desenhou e construiu quando era casada com Artur. Sua filha Carin de um lado e eu do outro de sua cadeira, pegamos um álbum de fotografias. “Esse é quem?” “Essa aqui é aquela que…?” “E esse? Quem é?” Tentávamos entretê-la, desfocar da dor. Ela respondia, educada, mas seu olhar estava longe… Ela fitava o jardim e o azul de seus olhos parecia diferente, num tom mais violáceo. Ela estava distante, alheia, olhava além do que podíamos enxergar. Ela se despedia.

Um gesto.

          No dia 31, a dor piorou, e ela foi para o hospital. No pronto socorro, nos revezávamos na ala em que ela ficou: Carin (sua filha); Paola (a neta); e eu. Na minha vez, coloquei minha mão sem tocar sua barriga, tentando emanar uma energia que eu rogava aos céus: “por favor Deus, não deixa ela sentir dor”. E ela, no auge de sua dor, pegou minha mão e a encostou em seu rosto, num gesto de carinho inédito. No extremo de sua dor ela ainda me consolava.

Despedida, com amor.

          Sedada para aplacar a dor, no dia primeiro de janeiro de 2020 ela dormiu, e surpreendentemente no dia 2, acordou.

          “Dra Ana, a senhora sabe que dia é hoje?” – perguntei a ela. Ela fez que não com a cabeça. “Hoje é o meu aniversário, e eu vim passar ele com a senhora”. Ela sorriu, daqueles sorrisos francos que eram tão dela. E aquele sorriso, ela estar desperta, foi o maior presente de aniversário que recebi naquele dia.

          Dia 2 foi também um dia de “festa”. Carin ligou para a sua filha Renata, que mora na Alemanha e canta divinamente, e foi ouvindo o canto da neta que vimos seus batimentos subirem pela máquina que a monitorava. Ligou pra Gabi e Carina, as netas que moram na Europa, e que têm paixão por essa avó; para o Odo, filho de Ana e sua família.

          Os amigos Santiago e Maristela também chegaram, e nos revezávamos na beira de sua cama. Nosso editor querido, Carlos Bellé, morando em Florianópolis, sabendo que ela estava no hospital, já estava na estrada para vê-la. Ele levou 3 dias para chegar… Aproveitamos cada momento dela neste dia, sabendo que havia um fiozinho de vida a prendendo entre nós. Aproveitamos para falar e acarinhar, e foi mesmo nossa última chance.

          No dia seguinte, ela dormiria para não mais acordar. Continuávamos todos lá.

          Paola, a neta que a avó salvou, literalmente, ao acertar a adubação de seu corpo quando era pequena e que hoje é uma médica esplêndida, tinha livre acesso ao quarto, que permitia somente duas pessoas. E então chegou o neto Juliano, filho de Arturzinho. Num momento lá ficamos, Paola, Juliano e eu, os dois relembrando da infância na fazenda de Itaí, as travessuras e aventuras, os aprendizados e experiências. Ouvir os netos foi como se eu pudesse assistir ao filme da infância dessas crianças por terem tido uma avó como Ana Primavesi. Ou Ana Primavesi como avó. Quanto privilégio!

          E, aos pouquinhos ela se foi, como a folha que cai, desgastada pelo vento, pelo tempo. Noventa e nove anos de uma vida que caberia em várias, por tê-la vivido intensa e plenamente. Apesar da dor perante a morte, de sentirmos esta perda profundamente, foi uma partida bonita, porque foi cercada de cuidados, de carinho, de compreensão e sobretudo, amor.

          Cinco de janeiro de 2020, data de sua partida. Receba nosso amor, Dra Ana, no desabrochar de todas as flores que cultivamos em solos vivos. Na preocupação de cobrir cada centímetro de solo com matéria orgânica, nas plantações de quebra-ventos, no contemplar de fungos emergindo da terra depois da chuva. Na compreensão de que tudo está interligado, amorosamente interligado, numa gigante rede de cooperação. E na aceitação de que a senhora seguiu o curso da vida, o nascer, crescer, desabrochar, envelhecer e morrer, e que sua existência significou para nós a esperança pela continuação da vida neste planeta.

          Muita muita saudade.

                                                                                           Virgínia M. Knabben