Muitas pessoas nos perguntam sobre como Ana Primavesi conseguiu recuperar uma área tão degradada como a que ela mesma comprou em Itaí, interior de São Paulo. O passo a passo foi descrito em sua biografia, aqui copiada neste trechinho.
“O trato do solo começou com a plantação de feijão guandu, que fixa nitrogênio e o libera para as plantas. Sem ele, as plantas não formam proteínas, chegando a formar apenas aminoácidos, deixando-as vulneráveis aos ataques de pragas. Depois, plantou soja e trigo em sucessão, para diversificar a vida do terreno, e adubou com NPK (nitrogênio, fósforo, potássio), cálcio, magnésio, cobre, zinco e boro. À medida que o solo ia se recuperando e se tornando permeável, a erosão, a barba de bode e os cupins foram desaparecendo, e não era preciso colocar mais nada.
Pouco a pouco, a água penetrava no solo em recomposição, surgiram nascentes e formou-se um córrego, que, mais tarde, encheu o açude que ela também construiu (Nota da Autora: Ana e Carin contam que quando estavam fazendo o açude, a escavadeira cortou um lagarto enorme. O lagarto parecia um dragãozinho, com cristas nas costas. Tempos depois, outro lagarto da mesma espécie apareceu na fazenda e “hipnotizava” as galinhas, comendo várias delas.)
Arações superficiais adicionavam ao solo os restos das culturas, nunca arando além de 15 centímetros de profundidade, para não revolver muito o terreno. Ana promovia a rotação de culturas, sempre deixando a palhada da cultura anterior sobre o solo. A palha se decompõe, liberando sais minerais para as plantas e produtos que agregam as partículas do solo. Assim, uma camada grumosa foi se formando. Nos primeiros quinze centímetros do solo, com o aumento da matéria orgânica, diversificam-se também os microrganismos, as minhocas, a vida, enfim, que se concentra nessa camada superficial da terra. Ana plantava culturas de raízes profundas, que “puxam” os nutrientes para cima, já que a argila, mais rica em nutrientes, costuma ser lixiviada (vai para baixo, é mais pesada e mais fina) e a areia, mais grossa, fica em cima.
Quando o solo estava bom, plantava milho, feijão, arroz, sempre em sucessão. Mesmo durante os períodos mais secos, entre as linhas de culturas plantava guandu e outras leguminosas para servirem de quebra-ventos, para manter a umidade do solo, protegê-lo do impacto da chuva e da insolação excessiva, e ainda fixar nitrogênio. O urucum também foi utilizado como cultura protetora, aproveitando o corante alimentício natural, e o café, que depois foi mantido exclusivamente. A cada dois ou três anos, colocava pó de rocha dolomítica como fertilizante. Ana chegou a ter três estufas onde plantava tomate, pepino e outros legumes, mas por causa da dificuldade de colocá-los no mercado, resolveu não continuar. Era trabalho demais para pouco retorno.
A mata nativa se formou, espontaneamente, e aos poucos surgiram uma, duas, três, quatro, cinco nascentes… era a vida pulsando, renascendo em ambiente propício. Ana colocou uma roda d’água para bombear e levar água para os pastos, sem uso de energia elétrica. A mata nativa se formou também na várzea, atraindo tamanduás bandeira, lontras, tatus-canastra, coelhos, onças, gatos-do-mato, quatis e veadinhos, que encontravam refúgio das pulverizações vizinhas, e também alimento.
Ao gado nelore que escolhera, dava sais minerais, porque o maior animal natural do Brasil é a anta, e os nossos solos são adequados para alimentar até este porte de animal. O gado, que é maior, precisava receber bem mais. Coisas de Primavesi. Diferentemente de seu pai, criador de gado leiteiro, escolheu nelore para engorda: “Quem iria tirar leite de gado holandês? Ordenhar duas ou três vezes ao dia e ficar preso nessas obrigações que nunca podiam falhar. Fora isso, gado leiteiro pode ter problemas de saúde mais fácil, simplesmente porque é mais difícil calcular os sais minerais que gasta por dia, ou melhor, que perde com o leite. É uma luta constante, porque não somente o gado tem a cada dia exigências diferentes, mas também o cuidado com a forragem muda constantemente.”
Além disso, ela não queria ser pecuarista intensiva. Queria lutar pela agricultura orgânica, poder viajar, escrever seu livro, divulgar seu conceito sobre o solo e sua importância para toda a vida no globo. “A vida não tinha começado em nosso planeta com a decomposição das rochas e a formação dos solos? Ninguém se interessava tanto pelo solo, mas para mim era o alfa e o ômega da vida. Todos se interessavam por plantas, animais, clima, etc., mas para o solo, poucos ligavam. E eu queria me dedicar mais a ele, em muitos sentidos.”
Ana contratou dois trabalhadores rurais para o trabalho diário na fazenda, e chamava boias-frias nas épocas de plantio e colheita. Ela fazia de tudo: olhava a fazenda, calculava os gastos, fazia as compras, os pagamentos, a manutenção, planejava e supervisionava o plantio, a colheita das lavouras, providenciava a venda dos produtos, e ainda atendia muitas pessoas que a procuravam querendo conselhos. Fazia palestras, dava cursos e assistências técnicas, participava de simpósios, respondia às cartas que chegavam aos montes: da família na Áustria, dos filhos, dos cientistas amigos do mundo todo, dos amigos que lhe escreviam com dúvidas e conselhos, dos que escreviam simplesmente para aprender e muitas outras… e lia. Lia tudo o que lhe caísse nas mãos, as revistas que assinava, que lhe enviavam, informes, jornais, livros, trabalhos. Em Itaí, criou seu universo particular, regenerando-se junto à terra que cuidava, recompondo-se de dores, lembranças tristes, guerra, mortes, confrontos, saudades. Mas em Itaí também vivenciava o contato consigo mesma, seu tempo, seu silêncio e sua energia, edificando a si mesma junto àquele pedaço de chão. Nem tudo era tristeza. As adversidades a haviam fortalecido, um novo ciclo recomeçava, como no processo de decomposição e recomposição, dos minerais às moléculas orgânicas.