O fluxo de vida proporcionado pelas raízes – Parte 1

Num país como o Brasil em que é melhor remediar que prevenir, o agricultor, ao percorrer sua lavoura, olha quase sempre para cima: verifica o stand (número de plantas por unidade de área), preocupa-se com o desenvolvimento dos brotos e com sua cor. Observa a formação do caule, das flores e dos frutos. E para por aí. Poucos são os que ligam para o que nasce dentro da terra e que é o coração desse fantástico mundo vegetal: a raiz. Alguns até pensam que a raiz não tem outra função a não ser fixar a planta no solo para que o vento não a carregue, e que tem ainda a “ burocrática” obrigação de absorver água e nutrientes da terra, chova ou faça sol, a fim de fornecê-los às folhas.

            Não sabem que a raiz é um organismo complexo e fascinante. Desconhecem que ela armazena energia para a frutificação. Não a imaginam, certamente, como fábrica de amido e aminoácidos – substâncias essenciais à vida. Pois saibam, então, que a raiz é uma espécie de “bairro industrial” da planta, no qual funciona toda a engrenagem que despeja no campo colheitas fartas e sadias.

            Portanto, para aumentar a produção, não basta ver que a planta vai mal, e nesse caso, recorrer a tecnologias importadas e à utilização de herbicidas e outros agrotóxicos, em doses muitas vezes desnecessárias – práticas que resultam em safras cada vez mais caras e tornam os solos desagregados, mais sujeitos a pragas e doenças. É preciso lembrar de que a raiz é quem “constrói” a planta com minerais e água que retira do solo. E respeitá-la.

            Com a adoção dos cultivos comerciais em grande escala, a habilidade das raízes para explorar solos diferentes – secos ou úmidos, pobres ou ricos, ácidos, neutros e até salinos – foi esquecida. Atualmente, avalia-se a fertilidade dos solos por meio de artifícios técnicos – providência que não diminui os custos de produção, apenas intensifica a venda de insumos

            Antigamente, existiam mais de 3000 espécies de plantas comestíveis e cultivadas no mundo, adaptadas a cada região e tipo de solo. Hoje, toda a população do planeta consome apenas algumas dezenas delas. Há cerca de 30 anos, havia 10.000 de variedades de arroz, somente na Malásia. Agora, não chegam a dez. É importante esclarecer que essa quase extinção de plantas e variedades não se deveu a qualquer alteração ecológica. Foi, isso sim, resultado do monopólio da produção e comercialização de sementes por poucas mas poderosas multinacionais. Aqui esse quadro é mais grave porque a pesquisa desenvolve variedades à intoxicação, normalmente causada por adubações maciças, mas não cria uma que renda bem em regiões e ecossistemas diferentes. Quer dizer, nossa agricultura quase toda gravita em torno de tecnologias sintomáticas, incapazes, por isso mesmo, de detectar os motivos reais da baixa produtividade de nossas lavouras.

            Se a planta não produz o que se espera é porque, na maioria das vezes, suas raízes são fracas e doentes. Também, pudera! As raízes perdem muita energia tentando, heroicamente, romper as lajes e crostas superficiais que se formam no solo. Vendo-se em apuros, a raiz pede socorro. Mas quem se apressa em ajuda-la? O que se faz é curar a parte aérea da planta com “remédios” químicos, sem nenhuma preocupação em punir os culpados por essa dramática situação –  a pressão de máquinas pesadas; a aração profunda; a destruição da matéria orgânica pelo fogo; o uso intensivo de herbicidas; a monocultura. Claro está que o resultado dessa impunidade é desastroso, pois, assim, gasta-se mais e colhe-se menos.

            A raiz surge logo que a semente germina. Como o crescimento inicial da raiz é muito rápido, ela se encontra em condições de alimentar o pequeno e frágil broto (que nasce pouco depois dela) quando acabarem as reservas da semente. Quando o broto abre as primeiras folhas, inicia-se o processo de fotossíntese. Com água, gás carbônico e luz, as folhas fabricam açúcares e os enviam à raiz, que rapidamente, transforma essa preciosa carga em glicose e ácidos orgânicos, remetendo-os às folhas. Como se percebe, raiz e planta beneficiam-se mutuamente. Isso só acontece, porém, se há equilíbrio entre os diversos fatores envolvidos nessa ajuda recíproca, inclusive entre os nutrientes imprescindíveis ao desenvolvimento da planta.

            A raiz cresce continuamente por suas extremidades, ocupando sempre maiores porções de terra em busca de água e alimento. Para isso, ela é dotada de milhares de milhões de pelos absorventes que se multiplicam, criando novos pontos de contato com o solo.

            A superfície radicular do centeio (Secale cereale L.), por exemplo, é de 640m2, e o conjunto de suas raízes e radículas (parte inferior do embrião da planta) pode atingir cerca de 620 km. Quanto maior  a raiz e quanto mais ela explora o solo, interceptando água e nutrientes, melhor e mais segura é a nutrição da planta – e tanto menos esta é afetada por veranicos (pequenos períodos de seca durante a estação chuvosa).

            A capacidade da raiz de mobilizar nutrientes, isto é, torna-los assimiláveis, é maior ou menor segundo a espécie de planta e a sua variedade. Essa mobilização depende:

  • Das excreções das raízes, que são constituídas por aminoácidos, gás carbônico e açúcares;
  • Da associação com bactérias e fungos;
  • Da presença de oxigênio (ou do transporte de oxigênio das folhas para a raiz, como ocorre no caso do arroz);
  • Da capacidade da raiz de liberar ácido carbônico (que dissolve os minerais) para o solo – capacidade essa que aumenta com a presença de carboidratos existentes nos açúcares a ela enviados pelas folhas e com a camada de cálcio contida nas radículas.

            As culturas de raízes fracas, como o trigo, são as que possuem menor poder de mobilização e, por isso mesmo, as que precisam de nutrientes bem próximos a elas, prontamente disponíveis. Assim, o rendimento do trigo plantado por muitos anos seguidos em terras onde não existam essas condições diminui gradativamente. Em compensação, nessa mesma terra, é possível obter boas colheitas de sorgo: suas raízes vigorosas têm grande poder de mobilização. Tal capacidade, porém, traz o inconveniente de esgotar o solo, razão por que, em rotação de culturas, deve-se evitar que plantas de raízes fortes (sorgo, algodão), precedam outras de raízes fracas (trigo, gergelim).

            A exemplo de alguns profissionais liberais, que se dedicam a determinado segmento  de seu campo de ação, há plantas especialistas em mobilizar certos nutrientes. É o caso do trigo-mourisco ou sarraceno (Fogopyrum esculentum Moench) e das leguminosas (feijão-de-porco, labe-labe, puerária e outras) em relação ao fósforo. O tremoço, a melancia e algumas variedades de soja fazem o mesmo com o cálcio (sabe-se que a soja majós contém três vezes mais cálcio em suas folhas que outras variedades – qualidade que a indica para solos ácidos, pois o cálcio neutraliza a acidez do solo).

            É bom tomar nota de que as raízes com elevada capacidade de mobilização excretam especialmente aminoácidos, substâncias que agem, no caso, como poderosas pinças, retendo os nutrientes e impedindo-os de serem arrastados pelas águas das chuvas. O algodão e o girassol, por exemplo, excretam 11 aminoácidos diferentes, o que lhes confere alto poder de mobilização.

            Em seu incessante trabalho, a raiz leva para a planta a água e os nutrientes nela dissolvidos. É uma operação que depende de seu potencial de absorção, o qual se processa por osmose, isto é, soluções líquidas de forte concentração “sugam” as mais fracas. Para que esse fenômeno ocorra, a solução do solo (água e minerais) tem de ser menos concentrada que a seiva das células da raiz. O potencial de absorção está também intimamente ligado à fotossíntese. Explica-se: nas horas mais quente do dia, as folhas fecham parcialmente seus poros e a eliminação de água pela planta, por meio da transpiração, é interrompida. Isso reduz a fotossíntese e a raiz recebe menores quantidades de carboidratos. Em consequência, o potencial de absorção diminui e ela “bebe” menos água. A planta fica, então, em perigo e reage: fecha ainda mais seus poros, para de fotossintetizar e não cresce.

            Em solos de mata, de estrutura granular profunda, a raiz penetra em camadas mais frescas e úmidas. Graças a isso, absorve água o dia todo, mesmo em momentos de intenso calor, não causando danos à planta. Nota-se, por aí, como é importante a raiz poder avançar livremente no solo.

            A raiz é como uma mãe para a planta. Ela sabe que, na euforia do crescimento rápido, a planta não armazena alimento, que, mais tarde, será necessário à formação de suas flores e frutos. Nessa primeira fase, – a chamada fase vegetativa – q fotossíntese é elevada e as folhas fornecem livremente carboidratos à raiz, que os estoca para abastecer as folhas na fase reprodutiva, quando surgem flores e frutos. Nessa última fase, a raiz enfraquece (tudo que ela produz é destinado a assegurar a frutificação) e para de crescer, uma vez que não consegue mais reter alguns nutrientes como o potássio, que retorna ao solo. Em culturas perenes como o café, uma sobrecarga de frutos num ano debilita de tal forma a raiz que a safra seguinte seguramente será menor. E, se por deficiência de magnésio, o cafeeiro perde as folhas durante a frutificação, pode até mesmo morrer porque a raiz não tem mais quem a alimente. Conclui-se daí que a produção agrícola depende do bem-estar da raiz e de sua capacidade de armazenar nutrientes.