Lições de vida de uma mãe chamada Ana Primavesi

Lições de vida de uma mãe chamada Ana Primavesi

(Para Arturzinho, com carinho)

“Em verdade chama-se Artur. Enquanto os irmãos começaram a falar com um ano, ele já estava com dois e raramente falava. Nem papai dizia e quando falava alguma coisa, eram palavras desconexas, isoladas, como se lêssemos um telegrama. ‘O menino é bobo’, disse seu pai, o que os vizinhos também não diziam mas também pensavam.”

“Ele mancava puxando sua perna direita e não conseguia dominar seus olhos principalmente quando estava agitado, olhando em todas as direções. Só de vez em quando aparecia o branco dos olhos. E não aprendeu a falar. Mesmo assim, não acreditei que era bobo. E quanto mais os outros o desconsideravam, tanto mais o amava. Às vezes, sentava e brincava com seus dedos. Contava-os. ‘Gosto a língua dos números’, ele disse. De resto falava pouco, aprendeu de fato somente os nomes dos números, pois por palavras pouco se interessava. Ele não sabia? Não conseguia pronunciar? Alguma parte de seu cérebro fora destruída por falta de oxigênio. Mas em crianças, quando ensaiam bastante, a outra parte do cérebro poderia se encarregar de substituí-la.”


“Tratava-o igual aos outros, não fiz diferença, não mostrei que me preocupava que não falava, que mancava, que era estrábico. Nunca mostrei minha preocupação com ele nem aos irmãos nem para meu marido. Era igual, igual aos outros e ele tinha que fazer também o que os outros faziam. Nunca devia sentir que tinha defeitos, nunca dizia: ‘Você não sabe ou não pude fazer isso.”

“Um dia seu pai voltou com uma caixa pesada. Os dois irmãos pularam em frente a ele e perguntaram o que era. O pai fez uma cara de segredo e não disse nada. Aí veio o Hati, olhou a caixa e disse laconicamente: É whisky. Todos ficaram surpresos. Como sabia? Ele mostrou a coroa na caixa e depois mostrou a mesma coroa numa garrafa de whisky. E era whisky mesmo. Aí ele se tornou um segredo ainda maior para mim, como podia tirar conclusões que os outros não tiravam mesmo sem falar? Falar não tem a ver com inteligência. Falar os bobos também falam. Nesse momento, uma pedra caiu de meu coração: ele era inteligente, muito inteligente, mas tinha problemas físicos.”

“Fui com ele num especialista e ele me disse o que eu temia: O menino foi prejudicado ao nascer, mas iria se recuperar completamente por volta dos 15 anos. Até lá, ele e nós tínhamos que aguentar. Ele iria aguentar as zombarias dos outros, ridicularizando-o quando ia à escola? Meu coração doía quando pensava nisso, porque crianças são cruéis e não perdoam a mínima diferença.”


“Para o pai foi duro ter um filho deficiente e ainda com seu nome, que ele mesmo escolheu e registrou sem me perguntar, e por isso qualquer coisa no menino o irritava.”

“Como ele caía no chão inconsciente muitas vezes, chamei uma benzedeira, uma portuguesa velha, gorda e muito carinhosa. Fez as suas rezas e para o menino ficar quieto, deu uns níqueis para ele depois comprar uns docinhos. Benzedeira não se pode pagar para não desvalidar o efeito, somente podia-se dar um presente, mas mesmo este ela não aceitou. Francamente não acreditava muito que estas benzas fariam efeito, porque sempre imaginei que a pessoa tinha que acreditar nisso para melhorar. E o Hati era pequeno demais para acreditar em benzedura. Para ele devia parecer uma brincadeira. Ou será que entendeu? Em todo caso, os ataques nervosos que ele tinha terminaram e nunca mais caiu inconsciente”.

“Um dia, um barulho ensurdecedor fez as vidraças tremerem. Seguiram-se uma série de pequenos estalos e depois o silêncio. O que foi? Todo mundo correu para fora. Aonde era? De onde veio este barulho? Uma mulher mostrou: ‘Foi lá no fundo deste mercadinho’. O dono mostrou-se solícito: “Podem entrar e ver’. Todos entraram de uma vez pelo portão do pátio, ou melhor, não entraram, se empurraram, pisavam nos pés dos outros, gesticulavam. Lá estavam, dezenas de caixas de verduras no chão. Um monte enorme de caixas tinha desabado e parcialmente escondido, debaixo de algumas caixas, jazia um menino, morto. Ou no mínimo parecia morto. Estava prostrado e não se movimentava. Os olhos estavam fechados e sua respiração estava tão fraca que nem se podia verificar.”


“Um grito desesperado me escapou: ‘HATI!’ Precipitei-me para frente. Nem sei como consegui tirar as caixas que estavam em cima dele e peguei o corpinho do meu gurizinho que não tinha ainda três anos. Ele caiu sem movimento em meus braços. Meu Deus, ele sangrava na testa, nas pernas, no ombro… E neste lugarejo nem tinha médico. O hospital mais próximo era em Itapeva, uns 20 km distante. Ali não tinha táxi e meu marido não estava em casa, mas na fazenda. Naquela hora, ninguém que possuía um carro estava em casa. O desespero tomou conta de mim. O menino tinha que ser socorrido, ele estava morrendo.”


“Chorei silenciosa e compulsivamente. Minhas lágrimas lavavam o sangue do rostinho dele. Muitas mulheres ao meu redor choravam também. Mas o que adiantava chorar? O que eu podia fazer? Gritei em desespero. ‘Somente a farmacêutica pode ajudar’, sugeriu uma moça.”


“A mulher era magra e aparentava certa idade. Tinha uma expressão de bondade. O jaleco branco mostrava que sabia algo sobre higiene, mas saberia algo sobre acidentes como aquele? Mas naquele momento era a única pessoa que podia nos ajudar. Deitei o menino inerte sobre o balcão. Ela olhava, pegava um estetoscópio e escutava. O coração ainda batia.

Espreiava um líquido sobre as feridas para que parassem de sangrar. Depois deu uma injeção para estimular o coração e começou a tratar as feridas, que graças a deus não eram profundas, colocou ataduras, esfregou os braços com cânfora e finalmente o menino acordou de seu desmaio. Olhou surpreso ao redor de si, a farmácia, a multidão que se aglomerava ao seu redor e tentou levantar. Na segunda tentativa conseguiu, ainda um pouco tonto, mas ficou de pé. Todos festejaram o milagre. Agradeci efusivamente à farmacêutica enquanto todos falavam ao mesmo tempo. Nesse meio tempo, o Hati sumiu. Gritei, chamei, onde ele teria ido? Entramos outra vez no pátio do mercadinho, lá estava ele, outra vez em cima de um monte de caixas. ‘Hati, você está louco? Não aprendeu? Já não desmoronou num monte de caixas e quase morreu?’ Um sorriso ingênuo iluminava seu rostinho: ‘mãe, não se preocupe, agora aprendi como fazer, agora sei como não cair mais.’” Com ele não tinha jeito mesmo.


“Os irmãos já iam à escola e ele ficou ainda em casa. Eram horas tristes para Hati. Tinha que brincar sozinho mas não era muito inventivo. Catava folhas que caíram no gramado do quintal, rançava uns azedinhos que ali cresciam, colheu algumas flores para me presentear ou simplesmente sentava embaixo do varal com a roupa lavada pendurada e cantava dando um gritinho cada vez que uma gota lhe pingava na cabeça. Este canto solitário atraiu um menino do outro lado do muro. Ele assoviou e foi amizade à primeira vista.

Um muro separava as casas, como ele ia subir? Não tinha escada. ‘Suba na mangueira’, o outro propôs. Hati nunca tinha tentado subir numa árvore mas o tentou e conseguiu. Dali em diante, os dois meninos sempre se encontravam no telhado. Levavam brinquedos, cantavam e eram horas alegres. Alegres porque era um momento só deles, onde ninguém reclamava, ninguém os espantava, ninguém deu palpites. Fizeram o que imaginavam, brincavam, cantavam, riam e eram felizes. Um mundo mágico que botavam pra fora todas as suas mágoas, preocupações, problemas e decepções.”


“Talvez essa temporada tenha permitido a Hati encontrar seu equilíbrio mental e espiritual, de formar sua personalidade. Mas um dia o menino não veio mais. Seus pais se mudaram. Hati ficou desesperado. Entrou pela janela da casa e viu tudo vazio. Nem o cão vigia corria mais no pátio, nem o papagaio o cumprimentou com seu grito rouco. Acabou tudo.”
“Passou os sete anos e Hati teria de ir à escola. Mas como não falava ainda direito, segurei-o mais um pouco. E não era só isso. Ele era meu último. Enquanto o filho está em casa pertence completamente à mãe. Mas quando vai à escola, parte da vida dele é fora da casa. Se não fosse deficiente, não teria me preocupado, mas imaginando tudo que iria acontecer, meu coração doía. Iria começar o seu calvário.”


“Todos me censuravam. Onde se viu, um menino já com 8 anos e que ainda não tinha sido alfabetizado? Faltava um mês para os oito anos quando Hati entrou no primeiro ano, sem poder formar frases, manco e vesgo daquele jeito. Os outros logo o repararam. Não somente que era deficiente mas também que era mais velho do que eles. E como um bando de coatis cai sobre um campo indefeso de milho, devastando tudo, caíram por cima dele. Cutucavam-no fazendo brincadeiras de mal gosto, roubavam seus lápis e cadernos, zombavam dele, jogavam coisas à sua frente para que tropeçasse, imitavam sua maneira de falar e cada vez que aprontavam com ele a turma toda se torcia de rir, sempre esperando que ele iria chorar.

E se fosse ‘menininho da mamãe’, mimado e protegido, como muitas vezes ocorre com crianças deficientes, iria chorar mesmo. Mas Hati não se incomodou. Não chorou, não bateu, não atacou e não correu. Ficou impassível. Nunca contou nada em casa, nunca disse não querer mais ir à escola, nunca se queixou. Fez suas letras, adorou os números e até pediu para a professora ensiná-lo a fazer pequenas contas. E no outro dia ia normalmente à escola, sem reclamar, sem nunca dizer nada.”


“Finalmente até a professora não aguentou mais. Era maldade demais com este menino… Ela chamou Hati e perguntou: ‘Você quer que eu fale com os meninos para que te deixem em paz?’ Hati balançou a cabeça: ‘Não, obrigado. Tenho tanta pena deles.’ A professora foi pega de surpresa. Ele continuou: ‘Minha mãe é muito mais inteligente que eles e ela me ama’, disse calmamente para a professora incrédula. Num outro dia, a professora me chamou para contar sobre o episódio: ‘Como a senhora ama tanto esse menino a ponto dele possuir tanta força para resistir?’ Se fosse mimado, não iria aguentar. Mimo não dá força, só cria egoísmo e medo. Cria uma situação irreal. Trato ele igual aos outros, com amor, com firmeza, com igualdade, com justiça. Nunca mostrei ter dó dele. Não queria criar este sentimento de comiseração em que ele mesmo se considerasse digno de dó, diferente, capaz de causar pena nos outros. Então a criança exige que todos tenham pena e se não a tem, sofre e se os outros ainda zombarem dele não mais quer ir à escola. E então nunca supera sua deficiência.”


“Finalmente, todas as malvadezas somente têm graça quando há alguma reação. Mas como esta nunca ocorreu, deixaram pouco a pouco de incomodá-lo. No segundo semestre, Hati era o líder da turma. Todos encontraram alguma coisa nele que admiravam: sua calma, sua alegria, seu talento para a matemática e a música… No fim do ano, tinha superado os outros nas matérias.”

“Para estudar, a criança gasta muita energia. E estudar e crescer ao mesmo tempo é um esforço muito grande. Para Hati, o que tinha de estudar estava abaixo da capacidade de sua idade. O esforço era pouco, porque ele era um ano mais velho, e tudo que era difícil para os outros era fácil para ele. E isso ficou durante toda a escola, estudava brincando.”

Fonte: Ana Maria Primavesi- Histórias de Vida e Agroecologia

Abril é mês de aniversário de Arturzinho, filho de Ana Primavesi. Ele faleceu aos 32 anos, vítima de um acidente automobilístico em 1985.