Cobras

Em suas andanças pelo Brasil, Ana Primavesi conta que muitas casas na Amazônia têm cobras “de guarda” (jiboias) no lugar de cachorros. Numa delas, um coronel do exército recebeu a visita de um sulista e de um americano.

De repente o americano enxergou no terraço uma cobra enorme, balançando na rede. “Os hóspedes se armaram de porretes e se sentiram enormemente corajosos quando atacaram a cobra deitada. A cobra fugiu, e eles atrás dela, e finalmente a mataram. Cheios de orgulho, mostraram ao coronel, que, quando a viu, demonstrou toda sua insatisfação: ‘Infelizes’ ele disse, mataram a minha cobra de casa. Ela me servia como um cachorro de guarda. E agora? O que eu vou fazer até amansar outra cobra?”

As cobras de guarda têm algumas vantagens: elas se abastecem sozinhas, e geralmente não são atacadas por outras cobras, além de serem muito fiéis a seus donos. Apenas as cobras gigantes podem se tornar perigosas, quando ultrapassam os quatro metros de comprimento, porque com este tamanho também comem animais de casa e até bebês quando estão com fome. Cada região tem seus costumes. “No Mar Negro, os pescadores fazem amizade com os golfinhos, que os ajudam a pescar. Na Amazônia dizem: quando um animal o incomoda, faça amizade com ele, porque como amigo não incomoda mais, mas ajuda.”

*

Foi no Sítio Duas Cachoeiras… A jiboia se machucou na roçadeira. Guaraci Diniz cuidou da cobra, usando pó de barbatimão, um cicatrizante natural. Não tinha onde a deixar, então ela ficou dentro de um saco vazio de arroz. Como tinha que trabalhar no sítio, Guaraci a colocou no banco de trás do jipe fechado que ele tem. E cantando para ela, conversando e vibrando sua intenção de ajudá-la, foi levando os dias. 6 dias em que a jiboia parecia sentir bastante dor, e ficava bem quietinha para passar o unguento… Então ela sarou.

Na hora de soltá-la, ela voltava para o saco. Talvez não quisesse se despedir desse homem que não parece ser desse mundo.

Uma homenagem dessa página a esse homem incrível chamado Guaraci Diniz.

Quem quiser saber mais sobre ele e seu trabalho, pode acessar a página do sítio: http://www.sitioduascachoeiras.com.br/

E, para completar o relato sobre cobras, abaixo reproduzimos um trecho da biografia de Ana Maria Primavesi que conta como ele cuidou de uma cascavel:

(Nota de rodapé) Um dos casos mais bonitos relatados enquanto escrevia este livro foi o que aconteceu com o agricultor Guaraci Diniz. Vivendo no Sítio Duas Cachoeiras, no município de Amparo, região de Campinas, São Paulo, esse homem de olhos azuis profundos, fala serena e cercado por cachorros por onde quer que vá, também tem uma história sobre cobra.

Conta que numa manhã de muita névoa, ele roçava o pomar quando seu rastelo cortou profundamente uma cascavel que repousava recolhida em meio às folhas do chão. O animal feriu-se gravemente, quase se dividindo em dois, tamanha a profundidade do machucado. Com pena da cobra, Guaraci a pegou cuidadosamente, colocou-a numa caixa própria para cobras e a levou para casa. Buscou na “casa das ervas” um vidro de barbatimão em pó e argila cinza, cicatrizantes naturais. Com tudo pronto, levou a caixa para a mesa da sala. Chamou uma pessoa para tocar violino e outra, flauta. Outra pessoa cantava, suavemente, enquanto sua mão repousava sobre a madeira da caixa. Guaraci conversava mentalmente com a cobra. Dizia-lhe que ia cuidar dela, que ficasse calma. No medo, ele não pensava. Não deixava que isso interferisse naquele momento, não queria que nada atrapalhasse sua intenção. Ele nunca fizera algo semelhante antes.

Sem pensar muito, abriu a caixa. A música tocava, a voz soava… A cobra ferida pôs a cabeça para fora, a língua tremulante. Todos se concentravam totalmente, imersos no momento e na intenção. A cobra olhou para frente, abaixou-se e voltou a enfiar-se dentro da caixa. Para fora, ficou somente a parte de sua carne ferida, aberta. Guaraci enfiou o dedo no unguento que preparara, e suavemente passou-o na ferida. Terminado o curativo, a cobra voltou a entrar na caixa. Por um mês seguido, Guaraci repetiu o ritual, cuidando daquele ser que machucara sem intenção.

Um dia, ao abrir a caixa, a cobra estava morta. O corte fora profundo demais. Num processo mais rico do que o resultado, mesmo com um final não feliz, a história de Guaraci tem a mesma beleza e pureza da alma desse homem bom, cujo propósito tem sido o mesmo, em qualquer circunstância: amar a todos os seres. Histórias do mundo da agroecologia.