Kazuco e a soja

– velhice

A sabedoria nos permite entender que é preciso muito tempo para se tornar jovem. Com 90 anos de idade, não posso desperdiçar minha juventude com os ditames da moda, ou com o vai-e-vem de ”certos” e “errados”. Posso tão somente contar o que vivi e relatar como guardei meu coração.

Encaro a velhice como um tempo de purificação, um tempo para filtrar o que se guarda e o que se esquece, Afinal, tudo o que nos dizem não tem peso maior do que aquilo que já vivemos e apropriamos em nossos corações.

– agroecologia

Hoje, quando se pensa na soja, o que vem em mente são extensas plantações de commodities, mantidas às custas de agrotóxicos e maquinário pesado, enriquecendo a quem já é rico. Eu aprendi num Congresso de Agroecologia em Belém que a expansão da soja plantada através do agronegócio vem devastando as florestas, destruindo principalmente a Amazônia.

Mas nem sempre foi assim, a soja em si tem sua origem no conhecimento tradicional do campesinato asiático. Ao invés de ingerir proteína animal, a soja era a base proteica da alimentação das famílias que viviam da agricultura familiar na China e no Japão, como meus pais.

– receitas de vida

Outra receita interessante era o bolo de bagaço de soja enriquecido com a casca de ovo. Minha mãe enfileirava as cascas de ovos numa peneira de taquara feita pelo meu pai, punha para secar ao sol, e depois de bem sequinhas, triturava no suribachi (tigela de cerâmica com sulcos internos, inclinados). Depois de trituradas as cascas, ela peneirava e adicionava aos bolos, para melhorar a oferta de cálcio. (…) Quando fui fazer, pela primeira vez, aos 75 anos, uma densitometria óssea, o médico parabenizou-me pelos meus ossos, dizendo: “Olha seus ossos são tão fortes que você pode brigar com seu marido, não tem perigo”.

– casamento

Como escrevi no começo do livro, a soja foi um cupido para meu casamento com Shiro, em 1995. Com nossos interesses, origens e cultura comuns, e mesmo o privilégio que tivemos de acesso aos estudos, tínhamos toda a chance de uma vida bem equilibrada. E, de fato, em vários aspectos, nos combinávamos bastante bem.

Porém, sendo humanos, durante nossa longa vida em comum, fomos muito desiguais, muito mesmo. E sem saber como lidar com nossas desigualdades nos direitos de marido e esposa, passamos por muitas dificuldades e dissabores. Eu desconheço muitas coisas deste mundo atribulado, sou pessoa sossegada de nascença, mas se eu desconfiar que está acontecendo algo estranho, já fico matutando.

Para aprender o ponto certo de um casamento, ah, para isso certamente não tem receita! Se não souber o COMO FAZER com a desconfiança entre parceiros, o amor vai se distanciando e a alegria também. Não há receita para esse COMO FAZER, mas quero lembrar que a fé e a esperança em Deus nos sustenta nas contínuas tentativas dessa “culinária”. Nas décadas de vida em comum, Shiro e eu lidamos com mágoas e reconciliações, em espirais que parecem infindáveis.

No entanto, nos últimos anos, mesmo com a correria que ambos mantínhamos em nossas vidas, guardamos tempo para nós, e conversávamos por longas horas, muitas vezes noite adentro. Devagarzinho, fomos chegando, chegando, e nos perdoamos mutuamente. Em julho de 2017, perdi meu companheiro de caminhada, após 63 anos juntos.

Receita:

https://anamariaprimavesi.com.br/2021/08/05/a-soja-em-nossas-vidas-por-kazuko-miyasaka/