Na agricultura convencional, o solo não é nada para eles. É só suporte para a planta ficar de pé. Nada mais. Na agricultura ecológica, o solo é tudo. É o solo que produz.

Trechos da entrevista dada à Revista Terra em 2009.

– Como a senhora chegou aqui no Brasil e se envolveu na discussão de agroecologia?

AP: Estou fazendo mais de 64 anos de agroecologia. Desde que me conheço por agrônoma, faço agroecologia. Antes, até! Eu tinha um professor que toda universidade criticava que misturava biologia, botânica, ecologia e agricultura. Com ele, começamos a compreender as inter-relações. Mostrava que tudo é um conjunto e não fatores isolados. Isso lá na Áustria. Aí eu entrei logo em seguida na Agroecologia, me formei e só trabalhei nisso a vida toda. Nunca fiz outra coisa.

– Aqui no Brasil, como a senhora começou esse trabalho com a agroecologia?

AP: Na Áustria, estávamos numa universidade agrícola. A profissão era ensinada de forma geral, não específica, porque ela atendia todo sul da Europa, Oriente Médio até o sul da Índia, Então o ensino tinha que ser geral para que cada um depois conseguisse trabalhar em sua região e adaptar à sua realidade. Por isso, não foi difícil no Brasil também. Esse conhecimento logo se adaptou por causa disso.

– Quando vocês chegaram aqui (Ana Primavesi e seu marido Artur), já encontraram alguma base de uma agricultura mais tropical, mais ecológica?

AP: O Brasil já tinha agricultura tropical, aliás até 1945. Depois ele abandonou porque os estadunidenses faziam pressão e defendiam a agricultura química. Aí violaram tudo. Nos anos 60, os estadunidenses fizeram fantásticos negócios com a Revolução Verde. Ela consistia em simplesmente matar os solos para poder usar adubos e agroquímicos. Isso porque o problema depois da guerra foi que as fábricas tinham produzido cada vez mais máquinas e químicos. Com o fim dos confrontos, eles tinham estoques enormes e não conseguiam vender. Aí fizeram convênios em que a agricultura comprava esses químicos desnecessários e com isso ela se endividava muito. Por isso se chama agricultura convencional até hoje. Isso funcionou fantasticamente nos EUA. É a base do desenvolvimento deles. Então eles dizem que isso seria muito melhor para a América do Sul e África. Vieram para cá e contaram a história para o Ministro da Agricultura, que  acreditaram porque os estadunidenses eram muito agressivos. Fizeram com os agricultores horrores: disseram que eram idiotas, contra a modernidade e tudo mais. Aí conseguiram entrar com a agricultura deles nos países e vieram milhares de “tais” agrônomos que ensinaram essa agricultura. E aí começaram as dificuldades. Me chamaram de antiamericana mas eu não sou. Sou anti esse negócio que faziam, que é a maior porcaria que existe. Não dava para aceitar.

– O que é a sua proposta de Manejo Ecológico do Solo?

AP: Manejo Ecológico é a ideia de que o solo tem que ser vivo. E solo vivo precisa no mínimo de sete a oito toneladas de matéria orgânica por ano. Além disso, deve ter uma micro vida ativa, a mais variada possível, porque cada bactéria faz alguma coisa específica. Para isso eu preciso de uma multiplicidade de culturas e matéria orgânica. Esta é a base. A matéria orgânica é a comida do solo. Você não precisa de matéria orgânica para produzir porque ela não produz coisa nenhuma. Ela serve, exclusivamente, para a micro vida porque, afinal de contas, nenhuma planta come pedaços de outra. Então as pessoas têm feito uma grande confusão achando que matéria orgânica é agricultura orgânica. Não é. O micróbio tem que ser bem nutrido, de maneira bem diversificada, para ter diversificação na vida do solo. A matéria orgânica tem que se decompor e depois uma parte desses elementos é perdida para a água, uma parte absorvida pela argila e uma parte é comida pelas bactérias. Só esta parte serve para a planta. A vida do solo é muito complexa, sabe? Portanto, a matéria orgânica não é para a planta. É para os micróbios. A vida no solo no clima tropical é somente até 15 cm. Na Europa até 30, 35 cm. Isso porque no clima temperado os micróbios que são dominantes são só bactérias. Aqui tem fungo. E o fungo tem o santo costume de produzir antibióticos. E a partir de 15 cm tem tanto antibiótico no solo que acaba a vida.

– Quando a senhora lançou seu livro “Manejo Ecológico do Solo” , ele foi atacado por cientistas. O que estava em jogo nessa questão: a disputa teórica ou econômica? Ou ambas?

AP: No final, a questão era econômica porque os que me criticavam queriam vender os produtos químicos. Agora, se o solo está com saúde, não há doença e a planta cresce. A questão é que o agrônomo aprende a vender adubos químicos. Foi isso que a escola ensinou a ele. Não foi agricultura. No máximo o que ele aprende é lidar com máquinas.

– Muitas vezes os assentados da Reforma Agrária são colocados em locais de terras muito ruins, onde não têm apoio técnico, infraestrutura. Aí a viabilidade do assentamento fica complicada, até porque muitas dessas pessoas não são mais aqueles agricultores de antigamente, são os filhos de agricultores que nem sempre tem esse conhecimento da terra. Como a senhora vê essa questão?

AP: Aí eu acho que tem um problema. Isso deveria ser ensinado aos filhos de agricultores que não têm ideia do campo. Vocês deveriam ter um tipo de escola em que se fizesse a prática para eles aprenderem a lidar com a terra. Isso porque o grande problema que eu vejo é que o pessoal não lidou mais com a terra. Eles vivem aqui na cidade e querem voltar para o campo. Mas a terra é uma coisa que tem que ser conhecida, aprendida. A escola não deve ser só escola. Ela tem que ensinar o contato com a terra. O mais importante é isso! Por isso, vocês não podem simplesmente lutar para dividir a terra. Agora eu não entendo uma coisa: tem muita gente que quer voltar para o campo, mas o governo não faz nada para ajudar!

– Entender a terra é um processo bastante complexo. Qual é o grande ganho de se fazer essa agricultura mais ecológica?

AP: Ecológico quer dizer que em cada região se trabalha segundo as condições da terra. Agora, eu não posso simplesmente dividir uma fazenda e fazer só agricultura. Eu tenho que ter mais ou menos metade florestada, porque o vento baixa a produção entre 37% a 65%. Por isso é importante ter metade da área estrategicamente reflorestada para o vento não passar. No Ceará temos agora uma experiência fantástica. Eles tomaram uma região semidesértica e, com muito custo, começaram a reflorestar e a cortar o vento. Em seguida, plantaram. Agora a região  está toda recuperada e com agricultura bem próspera. Então, primeiro tenho que pensar o que quero produzir. Em seguida, tenho que ver a proteção do solo, que tem que ser protegido contra o impacto da chuva e da insolação. A terra não pode ficar quente nem seca. Tivemos muitos casos em que chegamos a um agricultor e ele reclama da vida na terra. É uma choradeira bastante grande. Aí ele vira para mim e diz que este ano perderam dois hectares que já estavam preparados, plantados, mas como depois faltou água, não teve jeito de irrigar. Então eles simplesmente abandonaram o cultivo. Só que depois de ver as culturas desse agricultor, que não eram muito boas, verificamos esses dois hectares. Abrimos o mato e vimos que lá estavam as verduras mais lindas de toda a propriedade! No mato, cresce muito bonito por causa da sombra, da diversidade das raízes. Parte do mato prejudica o cultivo, mas a maior parte, não.

– Qual a receita, afinal, para garantir um bom solo para plantar?

AP: O manejo do solo é básico. A planta fica boa se a terra está boa.

– E não tem que ser adicionado nada?

AP: Adicionado não. A terra tem que ter a matéria orgânica que sua vida precisa. Isso quer dizer que não pode ser um cultivo só. Além disso, tem que ter a proteção do solo contra o sol, o vento e o impacto da chuva. E depois vem o plantio. Se eu planto, por exemplo, arroz ou milho, não posso ter 10 cm de uma terra dura e deixar a raiz ficar lá em cima. Não adianta. Tenho que ir mais profundo.

– E as doenças, pragas, doenças?

AP: Mas o que é praga? Para mim, praga não existe. Existe uma vida intensa de micróbios, insetos e etc. Que beneficiam a planta. A natureza não se pode dar ao luxo de manter alguma planta que não está com plena saúde. Então, no momento em que  a planta está deficiente em alguma coisa, a saúde dela não vale mais a pena e vem um inseto e mata. Agora tem essa concepção bastante errada em que as pessoas dizem: “A região está cheia de ferrugem, de praga.” Não é que está cheio de pragas, porque isso não existe sempre, em toda a parte. Não é que são pragas, eles simplesmente matam a planta quando ela não tem mais condições de viver. Então, a doença é para a vida não degenerar e não para eliminar uma cultura. Agora, se o solo está compactado, aí precisa toda essa porcaria química. Se a terra fosse boa, não precisaria. Se a terra está ruim, a planta vai ficar doente.

– Esse cultivo mais ecológico exige também uma mudança de comportamento dos agricultores, não? Há uma questão cultural?

AP: Claro! É cultural, porque ele tem que deixar essa ideia de que a agricultura funciona em qualquer solo. Na agricultura convencional, o solo não é nada para eles. É só suporte para a planta ficar de pé. Nada mais. Na agricultura ecológica, o solo é tudo. É o solo que produz.

– Mas essa mudança de comportamento também deve ocorrer no campo da ciência, não?

AP: É complicado mudar a ciência, porque ela é dirigida pelos EUA e eles querem vender químicos. Para a ciência mudar vai ser complicado. Agora, para o agricultor mudar ele só precisa ver como funciona essa agricultura ecológica. É impressionante como a agricultura orgânica funciona quando é bem feita. E é sempre mais barata que a convencional.

– A senhora acredita em agricultura orgânica em larga escala?

AP: Em larga escala como é feito com a soja, em 300 mil ha, eu acho que não. Mas em áreas menores sim. Até uns 200 ha dá porque o agricultor tem que controlar e ver o que acontece. Agora, nessas super fazendas com 600 ha, é mais complicado. Eles plantam uma cultura só em larga escala e pronto. Por outro lado, temos um agricultor orgânico lá perto de Botucatu (SP)  que tem verduras enormes, muito bonitas. E todo mundo pergunta como ele faz, quanta matéria orgânica coloca: 50, 60 ou 70 toneladas por hectare? Ele coloca 15 t. E explica que o problema não é a matéria orgânica mas sim a raiz, que as pessoas plantam mal. Eu já verifiquei que, algumas vezes, o sujeito que planta faz um buraco, bota a raiz e fecha. Não toma cuidado. Isso dobra a raiz, que aí não cresce mais e não produz mais nada.

– Eu posso plantar qualquer cultura de maneira ecológica? Soja, feijão, batata, etc.?

AP: Sim. Qualquer coisa pode ser orgânica. E o solo tem que ser bem protegido. Só que vejo que o pessoal está virando o solo mais fundo possível com o trator. A terra não aguenta assim.

– Às vezes, quando a gente compra frutas, aquelas muito grandes têm  muita água e pouco gosto. Essas são as que têm muito produto químico, não?

AP: Elas têm pouco gosto porque só possuem três elementos. O resto é veneno. Uma planta precisa no mínimo de 45 elementos diferentes. Alguns estudiosos dizem 80. Hoje em dia, no máximo, as plantas recebem 15 elementos na agricultura convencional. O que a planta não tem, o animal não recebe nem o ser humano. De onde recebemos os sais minerais?

– A senhora acredita que seria possível que a agricultura convencional, do agronegócio, se convertesse em um cultivo agroecológico?

AP: Eu acho que esse caminho vai ser mais ou menos automático, porque a agricultura e toda a nossa economia não podem continuar como estão. No meio científico, a agroecologia está começando a ganhar espaço porque esses cientistas não podem fugir completamente do modo com que a natureza funciona. Não adianta medir forças com a natureza. Ela vai vencer sempre.