Histórias gostosas de Primavesi

Nas palestras requisitadas por toda parte, Ana Primavesi já dizia “agricultura ecológica” ou “agroecologia”, explicando que a agricultura orgânica trabalhava com matéria orgânica no lugar do adubo químico ( era uma agricultura que substituía os insumos mas que não procurava atacar as causas de problemas), e a ecológica trabalhava com o conjunto de fatores naturais de um local, incluindo solo-água-clima, uma agricultura adaptada ao lugar. Ana sempre explicava que para saber qual cultura se adapta melhor a determinado lugar, joga-se um punhado de sementes das diferentes espécies ou variedades na terra, e a que brotar com mais força é a “eco-lógica”, apta a crescer bem naquele terreno (ou ecótipo).

Suas lições básicas, além de ressaltar a importância da vida do solo, são estas: “A planta precisa, no mínimo, de 45 minerais, entre os micro e macro nutrientes, chegando a 70 ou 80, contando-se os traços de elementos (frações tão pequenas do elemento que quase não se pode mensurar) para se desenvolver com saúde e formar suas substâncias; mas hoje, a planta recebe no máximo sete elementos (N. P, K, S, Cl, Ca, Mg), então ela fica deficiente, porque se aumentamos a concentração de um elemento, criamos desequilíbrio para outros. Os alimentos podem apresentar formas grandes e bonitas, mas podem também ser só uma estrutura, sem valor nutritivo.” Por isso, defende que o composto orgânico não é essencial, e sim os minerais. Ensina que as deficiências minerais podem ser identificadas analisando-se a deformação ou descoloração das folhas, a forma em que a raiz se desenvolve, a maneira das plantas crescerem, a invasora predominante e fazendo-se a análise foliar. E completa: “se a planta que você usar para fazer a palhada de cobertura estava sadia antes de ser tombada, ao se decompor fornecerá todos os minerais necessários ao solo. Plantas nativas somente aparecem sob condições favoráveis, ou seja, quando os nutrientes do solo estão presentes na quantidade exata para a vida delas, e desaparecem quando essas condições se modificam.”

Ao participar de um Congresso Latino Americano de Manejo Ecológico na Vila Yamaguishi como palestrante convidada, já acomodada em seu quarto ela procurou por Romeu Mattos Leite, um dos moradores da vila. Queria uma lanterninha porque a sua estava sem pilha. “Uma lanterninha? Mas a senhora pode acender a luz aqui” ele respondeu solícito, mostrando o interruptor. “Não, não é isso, é porque eu gosto de andar à noite e observar os bichinhos.” E lá ia ela, lanterna numa mão e bengala na outra, no breu da noite. “Por mais que a gente olhe para os insetos e achem que eles são uma praga, eles estão cumprindo a sua função e nossas ações podem causar desequilíbrio e a impressão de que esses insetos estão causando um problema, mas eles estão cumprindo o papel deles. Quem comete os erros somos nós. E foi ela quem mostrou isso pra gente, com a sua sensibilidade. Não é só a técnica, o intelecto. Entra ali o coração, e isso a aproxima da natureza e nos aproxima dela”, emociona-se Romeu.

Dessas observações, Ana conta uma das historinhas mais queridas e encantadoras por ser exatamente narrada por ela, a da formiga Corumbá.

“É uma formiga pequenininha e por isso tem que se defender, e então ela dança. Dança pra cá, dança pra lá – e a Primavesi dança com os cotovelos dobrados, girando de um lado para o outro – e a outra formiga olha para ela dançando e fica ‘louco’, não aguenta e vai embora. É porque ela está acostumado ao bicho andar direto e não fazer essa dança, e ela faz isso para ficar naquele lugar. Os outros não aguentam e vão embora. Tem dessas em Sorocaba.”

(Nota da Autora: por sua origem austríaca, é comum Ana Primavesi trocar gêneros femininos por masculinos, e vice-versa)

No Ceará, Ana foi ver a plantação de seu Tinoco. O homem estava numa situação difícil, e tentava plantar hortaliças, mesmo com poucos recursos e na terra arenosa e branca. “Mas por que de vez em quando tinha um pé bonito?” Isso Ana não entendia. “Posso arrancar um pé de alface?” ela perguntou. “Quantos quiser, não dá pra vender mesmo… ”Ana arrancou um, dois, foi arrancando mais… em todos o mesmo problema: a raiz crescia para cima. “Quem plantou a alface?” “Minhas crianças.” “E como fazem?” ela quis saber. “Eles vão enfiando os dedinhos e plantando.” Ana sorriu. “De agora e diante, o senhor peça aos seus filhos que façam o buraco com um pau, não com os dedinhos. A semente precisa ser enterrada mais fundo do que os dedinhos de suas crianças alcançam.”

João foi outra pessoa que, em sua sabedoria amorosa, ficou marcado nas memórias de Ana. Tá certo que ele era meio lento, demorava a entender as coisas, mas seu coração era de uma bondade só. Ajudava a todos, sempre com boa vontade, mesmo naqueles serviços que ninguém queria fazer. Era um homem prestativo, mas com poucos amigos, justamente por ser tratado como “bobalhão”. Na fazenda em que trabalhava ficou encarregado de cuidar de uma parte dos porquinhos, enquanto outro moço cuidaria do restante. João amava aqueles bichos e nas suas folgas sentava-se no meio deles e os escovava, escovava, conversava. Os porquinhos já sabiam que ele ia chegar, e se enfileiravam perto da portinha.

O dono da fazenda percebeu que os porquinhos “do João” cresciam mais rápido, nunca adoeciam e eram bem mais mansos. Os outros também perceberam isso e começaram a se perguntar por quê. Seria uma comida extra que ele dava? Pegaram amostras da comida, mas era tudo igual. Alguma droga misturada? Impossível, ele não tinha dinheiro para isso. Os porquinhos “do João” ficaram famosos na região. Como um rapaz tão abobado podia ter os melhores porcos? Talvez não fosse tão bobo assim…

Um dia, o menino do vizinho fez aquela pergunta que só as crianças sabem fazer: “Qual é o segredo pra seus porquinhos crescerem melhor?” João olhou para o menino com a sua cara mais boba e respondeu: “Não tenho segredo nenhum. Eu gosto dos meus porquinhos, e eles gostam de mim.” Virou as costas e saiu andando.

Todas essas histórias não eram simplesmente “historinhas bonitinhas” ou “engraçadinhas” para Ana. As observações delas despertavam-lhe reflexões. Foi assim que observou, quando morou em Sorocaba, que seus porcos estavam sempre doentes. Não cresciam nem se movimentavam muito, mostrando-se muito apáticos apesar de todos os cuidados. Já os porcos do vizinho, que nem eram tão bem tratados como os dela, estavam gordos e ativos. O chiqueiro desses porcos tinha tijolos e telhas de barro, enquanto que os de Ana ficavam num chiqueiro construído com tijolos de cimento. Ana derrubou tudo e fez um chiqueiro novo, todo com material de barro. Os porcos logo começaram a comer melhor e não ficaram mais doentes. A mesma coisa aconteceu com tio Schnatt, o pato de estimação de Carin. O bicho vivia perdendo as penas do rabo, e só quando trocaram o telhadinho de cimento de sua casinha por telhas, o rabo cresceu e ficou. Não os perdeu mais.

Transcrição de um trechinho do livro “Ana Maria Primavesi – histórias de vida e agroecologia”, editora Expressão Popular.