Remédios de índios e bugres
coletados por Ana primavesi

Desde que chegou ao Brasil, em 1948, o contato com índios,  quilombolas, benzedores e algumas situações inusitadas ensinaram à Ana Primavesi conhecimentos que extrapolaram seu saber acadêmico e que colocaram suas crenças em xeque.

Tudo começou em uma colônia rural de uma Usina açucareira à margem do rio Grande, em Passos, MG, em 1951. Sua auxiliar doméstica era mestiça de indígena com negro, que antevia e percebia acontecimentos que ocorriam fora da casa, por vezes a alguns quilômetros de distância.  No canavial, o marido Artur permitiu que um benzedor negro tratasse das brocas, que após o procedimento, caíram mortas. Em outra ocasião, outro benzedor chamou as baratas de uma casa, que de lá saíram em bandos, desaparecendo.

“Morando numa casa provisória na área rural de Itaberá, 1953, Ana deparou-se com um problema sério: a casa estava repleta de cobras. Era cobra nas cadeiras da cozinha, enrolada na vassoura, no volante do carro, embaixo da mesa, nos galhos das laranjeiras, até dentro dos armários. Com duas crianças pequenas, a solução sugerida pelo marido, Artur, deixou-a estarrecida: ele iria chamar o “pegador de cobras”. “Achei ridículo”, ela contou. O homem pegaria as cobras à vista, poria uma armadilha aqui ou ali, mas não daria conta de exterminar todas. Aquele lugar estava infestado.

O tal pegador de cobras esfregou umas ervas em duas caixas grandes de madeira. Ana olhava aquilo e se irritava. Não iria funcionar! Que perda de tempo. Mas não havia muito o que fazer e nem a quem recorrer. Depois de esfregar as ervas nas caixas, o homem sentou-se e tirou do bolso uma flautinha de bambu, que assoprava mas dali não saía som algum. E eis que a “mágica” aconteceu: as cobras começaram a sair das moitas, do telhado, debaixo das tábuas, de todos os buracos. Saíam e rastejavam direto para as caixas, ficando lá, quietinhas. O homem então assegurou que não havia mais nenhuma cobra por ali, fechou as caixas e as levou para o meio do terreiro. Pediu umas galinhas que pudessem servir de alimento a elas, e quando os frangos estavam mortos e meio depenados, soltou a “cobraiada”. Ana se apavorou e gritou, apavorada: “Pelo amor de Deus, vai soltá-las de novo?” Mas as cobras não foram embora. Comeram e voltaram para as caixas, que foram levadas posteriormente para o Instituto Butantan, em São Paulo.

E que ervas eram aquelas? Não sabemos. Ana Primavesi confessa seu arrependimento em não ter se interessado, porque não acreditava, absolutamente, que aquilo funcionaria.” *

“Morando em Itaberá, o título de “doutora” atraía pessoas doentes pedindo por ajuda. Não adiantava dizer que ela era doutora em agronomia. “Doutora é doutora”, diziam, e então ela começou a fazer uso da medicina popular, até porque vivia numa fazenda e naquela época, farmácia não era um lugar tão acessível. Mas foi com a chegada de uma índia de 104 anos que ela aprendeu muitas receitas. Esta índia sofria com eczemas nas pernas há muito tempo, e mesmo sendo filha de um pajé, não conseguia melhorar. Ana Primavesi foi a única que conseguiu ajudá-la. Depois, quando precisava, era à índia que recorria, e nesse convívio, recebeu as receitas do velho pajé, algumas delas descritas aqui.”*

*Livro: Ana Maria Primavesi: Histórias de Vida e Agroecologia

 

Carin e Paola,filha e neta de Ana Primavesi, confeccionam o colete para fazerem o cataplasma de cebola. Veja receita no arquivo.

Ervas, matos, frutas, mel, brotos, até chifre de carneiro queimado. Quais receitas pertenciam ao pajé, quais foram elaboradas por Ana Primavesi, também não saberemos. Digitando-as, tentamos extrair um pouco mais de informação de cada uma, mas já faz muito tempo, ela não se lembra mais. Tudo que ela dizia era: “é preciso experimentar e adequar a cada situação.

Também a questionamos sobre a denominação “bugres”. No dicionário, “bugre” é a denominação de índios agressivos, rudes, pouco civilizados. Para Ana, são os descendentes de índios, que, vestidos, iam às cidades vender seus produtos, e em Santa Maria tinha muitos. “No fim, no fim, índio, bugre, é tudo igual. Eram as pessoas que mais entendiam o poder de cura das plantas”, completou.

Orientações gerais
sobre as receitas

  •  De modo algum substituem os tratamentos médicos.

  • Todos os ingredientes pedidos devem ser de origem agroecológica, ou seja: sem agrotóxicos, oriundos de solos vivos, tratados com cobertura morta, e, se possível, plantados por pessoas cientes de sua importância na prática agrícola. Uma planta atacada por vírus, fungo ou parasitas é deficiente em determinados nutrientes. E pode ser exatamente o nutriente que se precisa para curar a doença. (Por exemplo, uma vez fazendo cataplasma de cebola em uma neta de Ana, a febre não baixou e nem matou as bactérias. A filha havia comprado umas cebolas da Argentina no supermercado. Procuraram cebolas orgânicas e aí funcionou: a febre baixou e a infecção, combatida).

  • Algumas receitas não estão com dosagens detalhadas. Ana Primavesi explica que se deve usar a intuição, bom senso, convicção de que vai funcionar e o corpo vai reagir. Como herdou muitas delas de índios e bugres, não havia essa especificação com a dosagem. Tentamos aqui dar uma ideia geral de cada uma, mas a aplicação deve seguir pequenas dosagens de início. Como ela nos disse: “Precisa usar pouco para que o corpo entenda que ele é que tem que reagir”. Ou: “É simples demais para se acreditar que vai fazer algum efeito.” Podemos dizer que Ana Primavesi também sabia usar muito o lado direito do cérebro (não somente o lado esquerdo, racional e objetivo). O uso do lado direito explica a Criatividade, a necessidade de ter uma visão holística, a imaginação, a intuição, a subjetividade, a aleatoriedade (https://netscandigital.com/blog/os-dois-lados-do-cerebro/)

  • Algumas receitas possuem “simpatias”, como a de soluço ou ter de cortar a folha de laranjeira em 3 partes, com a mão, não à tesoura ou faca, em sentido longitudinal.  Coisas que não sabemos explicar o porquê, mas que existem, existem.

  • Àqueles que moram no campo, sugerimos que cultivem as mais diversas  ervas, para que as tenham disponíveis em caso de necessidade. A familiaridade com os cultivos, seus respectivos crescimentos, floradas, são importantes para a familiarização com seu uso. Ter as ervas por perto facilita também no que diz respeito ao ciclo da lua. Sabemos que na lua cheia, a seiva é mais intensa, e os efeitos se potencializam.

  • Chás devem ser bebidos no mesmo dia. Não guardá-los.

  • As folhas devem ser colhidas de preferência dois dias antes da lua cheia, quando a planta está com pico de seiva em toda a planta. Na lua decrescente a seiva está decrescendo, na lua nova está na raiz (época boa para, por exemplo, cortar bambu para fazer cerca, que durará muito e dificilmente será atacada por insetos que vêm atrás de seiva), na lua crescente a seiva vai subindo. As folhas/flores para chá devem ser colhidas antes das 9 horas da manhã, antes dos estômatos se fecharem devido ao calor. Para fazer trabalhos manuais, por exemplo, usando cartões com flores secas, estas devem ser colhidas na lua nova e entre meio dia e 14 horas, não perdendo assim a cor, nem bichando. Por isso, às vezes, quando se faz uso, por exemplo, de pomada de arnica montana, conforme a marca faz muito efeito, outras marcas não fazem efeito nenhum. E são todas de arnica montana! Faz uma enorme diferença: o local do plantio (ecológico), a produção (orgânica, pois se teve ataque de praga é deficiente em nutrientes), a hora da colheita, se já floresceu (aí as folhas perdem seu vigor), a lua vigente, o modo de preparo e a energia de quem a preparou.

  • A arruda (Ruta graveolans) não deve ser usada caso a mulher esteja grávida por ter efeitos abortivos.

  • Mastruço (Coronopus didymus) – só cresce no inverno.

  • As receitas numeradas significam que pode-se fazer uma ou outra. Às vezes, temos uma planta mas não outra, o que ajuda bastante na hora da enfermidade.

  • Receitas em tópicos significam que tudo é uma coisa só.

  • Receitas que levam fermento: usar fermento biológico daqueles que se usa para fermentar o pão.

Proporções e deficiências

  • Quando a pessoa estiver com falta de ferro, tomar esse elemento e mesmo assim a deficiência permanecer, é porque falta cobalto. A proporção que se tem é: 500 Fe/10 Cu/1 Co. O que significa que para 500 átomos de ferro precisa-se de 10 de cobre e um de cobalto. Se esse 1 de cobalto faltar, não haverá a absorção do ferro.

  • Falta de cobre: O gado fica derrubando a cerca. Ou o cérebro do bebê em mulheres grávidas não se desenvolve adequadamente e ele pode nascer paraplégico.

  • Falta de magnésio: Novilhas ariscas, que quebram cercas, ou gado zebu muito nervoso.

  • Falta de cobalto: os animais (vacas, cabras, coelhos) roem cascas de árvores, ou os bezerros ficam tristes (ela observava isso pela cauda), com pelos eriçados, e morrem de inanição. Essa deficiência também leva as vacas a tremores musculares.  

  • Falta de iodo: Potros e bezerros morrem poucos dias depois do nascimento, fracos, apesar de terem nascidos grandes. As pessoas podem ficar com cretinismo.

  • Falta de cloro: leva as vacas à morte depois da parição. Ou elas comem a terra onde urinam (serve para qualquer animal).

  • Falta de cálcio em capim rico em ácido oxálico: faz com que as vacas fiquem com a cara inchada.

  • Falta de cobre: Ovelhas com lã muito grossa, pouco ondulada, e que da cor preta passa para a ruiva, além de aproximadamente 20% dos cordeirinhos nascerem com as patinhas traseiras paralíticas.

  • Falta de manganês: Frangos e coelhos com ossos deformados, pernas curvas, ou porcos com excesso de gordura, com abortos frequentes. As crianças podem nascer aleijadas.

  • Falta fósforo: Se o gado tem apetite depravado e come de tudo (plásticos, chapéus, ossos), significa que está com “mal de paleta”, com cio irregular.

  • Falta de zinco: Porcos com eczemas. Crianças mentalmente atrasadas e muito paradas. O zinco ajuda a não se cansar tão rápido. Ele é o responsável por “descarregar” o gás carbônico da respiração, por isso, se ele falta, esse gás se acumula no corpo impedindo que o oxigênio tenha mais espaço.

  • Falta de nitrogênio: os animais lambem o reboque das casas.

Dicas da Primavesi

  • Em altitudes maiores do que 800 m, a fixação de cálcio é pior provavelmente por baixa taxa de oxigênio e menor pressão barométrica. https://link.springer.com/article/10.1007/BF02383459). Outros afirmam que a baixa pressão de gás carbônico ou alcalose pode trazer distúrbios em minerais afetando indiretamente a assimilação do cálcio. (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/1054380).

  • Para quebrar mau-olhado, colocar 2 galhos de guiné (Petiveria alliacea) perto de onde se fica.

  • Panela de ferro é excelente para se fazer feijão porque o enriquece com esse elemento.

  • Panela de cobre é excelente para se aquecer leite ou fazer arroz. Mas deve ser usada somente 1 x por dia. Essa panela costuma ficar esverdeada, sinal de que está com zinabre, uma oxidação do cobre (venenoso). Limpar bem e tirar esta camada com limão ou vinagre e sal.

  • Cobre é bactericida e fungicida. Geleia feita em panela de cobre dura anos sem fungar, feita em panela de alumínio, pega fungo em seguida.

  • Usar saco de papel de pão para substituir o papel de alumínio nos assados de frango; untar o saco com gordura por dentro e amarrar a boca. O frango fica crocante.

  • Chiqueiro para porcos, patos e galinhas deve ser construído com paredes de barro e telhas do mesmo material. Não de cimento. Aí não ficam doentes.