Centenário Ana Maria Primavesi


Quero ver Ana dar sua risada

Se havia algo que sempre fazia Ana rir, eram as peripécias de meus gatos.

Sempre tive muitos bichos em casa. Nos anos de convívio com Ana, eu estava com dez gatos e duas cachorrinhas. Quem tem gato vai saber sobre o que estou falando. Poses e patinhas, charmes e muita fofura.

Nos últimos dez anos de vida da Dra Ana, tive o privilégio de estar com ela e estive o quanto pude, ao máximo. Estive com ela nos aniversários e almoços, nas férias e nos fins de semana, nas homenagens e consultas médicas. Estas, raríssimas e por precaução e cuidado da filha sempre maravilhosa, Carin.

Numa dessas consultas, esperávamos na sala cheia. O quadro eletrônico anunciava o nome do próximo paciente, nunca o dela. Eu segurava os envelopes com seus exames.

“Vamos embora, está demorando muito”, ela dizia impaciente. “Só mais um pouquinho, Doutora, a senhora deve ser a próxima”. E já pegava o celular: “Doutora, olha isso”. Era a minha gata dormindo com a perna virada para um lado, o tronco para o outro. Ana ria. “Quantos gatos você tem?” – ela perguntava já sabendo a resposta. “Dez”. E ela soltava uma risada gostosa. E então eu mostrava as fotos e contava as peripécias de cada um, até que o quadro nos atrapalhava anunciando o seu nome.

Finalmente em consulta, o médico a trata como uma velhinha de 98 anos: “E como a senhora tem passado?”, com uma voz benevolente, beirando a infantil. Ela somente acena com a cabeça, afirmativa.

O médico abre os exames esperando pelo pior, claro, o que uma velhinha de 98 anos faria ali? E depara-se com um exame de vitamina D que tem quase o valor de 100% do ideal. Ele abre os outros exames e a história se repete. Olha o nome no envelope e o da ficha, e não, os exames não foram trocados, e sim, eles são dessa velhinha sentada séria à sua frente segurando suas bengalas entre as pernas.

Impressionado, não há muito o que fazer a não ser dispensar talvez a única paciente de 98 anos daquele consultório, daquele dia, daquela semana, mês, ano, ou da sua vida, que não tem nada e ainda apresenta exames melhores que o de muitos jovens. Talvez até que os dele.

O médico ainda disse ao encerrar a consulta, brincando: ”Dona Ana, espere mais um pouco, deixe eu desfrutar deste momento raro.” Olha para mim e diz: “Nunca recebi exames tão bons de uma paciente com essa idade”. Ana olha para ele e nada diz. Por que ela seria uma velhinha frágil e doente?

Em casa, seu companheiro era um papagaio. Ana passava as tardes com ele, alisava-o como eu faço com meus gatos, e ele era louco por ela. Sentada no sofá, um dia me disse: “Mas este bicho não é um papagaio mas uma mamagaia”. E não é que a lorinha começou a botar ovinhos? Que coisinha mais querida! E, ao chegar perto da Doutora, ela dizia: “Fala companheiro!”. Ou: “Aqui, vovó!”, esta última fala ensinada pelo genro Ricardo. Ana gargalhava. E a lorinha também. E todos nós ríamos juntos.

Quando nosso querido amigo Hiroshi chegava em sua moto com a viola a tiracolo, a alegria era geral. Ana ria, ria feliz com a música que falava de Deus e dos passarinhos, ria da lorinha gritando eufórica, abrindo as asas, e essa alegria toda me dá um nó na garganta agora, ao relembrar tanta coisa boa. Hiroshi em sua moto com sua viola cantando para Ana, mas que união feliz…

Traduzindo o diário sobre sua vida que conta o período em que estava na Universidade, na Áustria, e que coincide com o auge da Segunda Guerra Mundial, um capítulo destoa dos demais: “O Treinamento”. Era a descrição do treinamento dos professores caso houvesse um bombardeio. Acesa uma fogueira no pátio simulando um incêndio, aqueles magistrados comportam-se como crianças levadas, molhando uns aos outros, correndo de lá para cá, transformando o treinamento num raro momento de descontração. Ana tentava ler esse episódio mas chorava de rir, suas lembranças vívidas sendo expostas. E esta foi a única vez, em todo esse tempo de convívio, que a vi chorar de rir.

Amanhã seria seu centenário de vida. Quantas vezes ela mencionava que tinha quase cem anos, incrédula de que pudesse ter vivido tanto. Não era uma queixa, não era um lamento, mas era como se nos dissesse: chega, é muito.

Celebremos então este centenário à moda de Ana, na simplicidade de todos os aspectos:

Dos presentes que se resumiam a flores e frutas (o que ela mais gostava) ao simples passar a tarde assistindo a um velho e bom filme (Harry Potter, Exterminador do Futuro, Parque dos Dinossauros, Titanic, Downtown Abbey e Forest Gump alguns deles).

Das tardes ensolaradas no quintal gramado lendo um bom livro e tomando o sol “quentinho, quentinho” (como ela dizia) que faz no inverno, aos cochilos depois do almoço, um dos segredos dessa longevidade (palpite meu).

No simples estar junto sem nada dizer, mas sabendo que estávamos ali, juntas, e que talvez as palavras não dessem conta de exprimir o que aquilo significava de fato.

Nas refeições simples e variadas, com potinhos sobre a bancada com todo tipo de legumes e verduras, e ela pegando um tiquinho de cada uma, pouquinho mesmo, mas montando sempre um prato colorido.

No cantarolar enquanto eu lavava a louça, músicas de sua infância na Áustria, de sua cultura, de suas raízes.

Nas manhãs de domingo em que acordava cedo para assistir à missa na TV, levantando-se e sentando tal qual as pessoas faziam na igreja.

Celebremos, hoje, o centenário de uma mulher cuja permanência neste planeta nos fez tomar consciência de que nossa vida depende do que está abaixo de nossos pés, e que dedicou sua vida à terra, à Terra.

Feliz Aniversário, nosso jatobá sagrado. Te amamos.

Onde quer que a senhora esteja, estamos aqui enraizados, enraizando.

Com amor e muita saudade
Virgínia M. Knabben